Nos últimos dias reapareceu um mantra perigoso: “um terço dos destilados vendidos no Brasil é falsificado”. A frase assusta — e desinforma. Ela confunde mercado ilegal (guarda-chuva de várias irregularidades) com falsificação/adulteração (apenas uma parte desse guarda-chuva). Este guia reúne as fontes primárias que realmente medem o problema, explica o que cada uma avalia e oferece passos práticos para você comprar com tranquilidade.
A Quetzalli foi atrás das possíveis pesquisas mencionadas para tentar tornar as informações mais precisas.
PS.: Para quem quiser conferir, todos os links das pequisas estão no final do texto.
1) “Ilegal” não é “falsificado”: por que essa distinção muda tudo
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Mercado ilegal inclui, entre outros: evasão/subdeclaração de tributos, produção sem registro, contrabando/descaminho e falsificação/adulteração.
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Falsificação/adulteração é apenas uma fatia desse total.
O estudo mais completo e recente sobre o mercado ilegal de álcool no Brasil, da Euromonitor International (2024), traz percentuais por tipo de ilicitude e por categoria (destilados vs. fermentados). Ele mostra que, nos destilados, a maior parte do ilícito vem de evasão fiscal e produção sem registro — não de falsificação. Em 2023, a divisão do volume ilícito de destilados foi: 42% evasão, 36% produção sem registro, 12% falsificação e 8% contrabando. Em fermentados (cerveja + vinho), a evasão domina (81%).
Conclusão: dizer que “~30% do mercado de destilados é ilegal” não equivale a “~30% é falsificado”. A falsificação é parte do problema — importante, mas não a maior.
O mesmo relatório estima as perdas fiscais totais do setor de bebidas em R$ 28,2 bilhões em 2023, o que ajuda a dimensionar o impacto econômico (e a necessidade de fiscalização).
2) Quais são as bebidas mais falsificadas?
A Euromonitor lista, para 2023, a distribuição do “álcool puro falsificado” por categorias: whisky (32%), vodca (27%), cerveja (25%), outros destilados (6%), cachaça (5%), gin (3%), vinho (2%). O estudo comenta que destilados de marcas conhecidas são alvos frequentes porque o preço alto atrai fraudadores e o consumo misturado dificulta a percepção do consumidor.
Tradução prática: o risco aumenta em destilados “aspiracionais” e cai muito quando a compra é feita em canais formais com cadeia de suprimentos rastreável.
3) FEA-USP (parecer sobre o SICOBE): por que a “USP” vive nas manchetes
O Parecer econômico-financeiro da FEA-USP sobre o SICOBE (sistema de contagem/rastreamento na linha de envase) não produz uma “nova taxa de falsificação”. O documento compara séries de receita líquida do setor (PIA/IBGE) e arrecadação federal (IPI, PIS/Cofins), mostrando que após a extinção do SICOBE em 2016 abriu-se um descolamento: entre 2017 e 2023, a receita do setor cresceu 83,34%, enquanto os tributos subiram ~34%, sugerindo subnotificação e evasão e reforçando a necessidade de rastreamento. O parecer descreve a função do SICOBE (contagem em tempo real, cruzamento com notas fiscais, verificação de autenticidade) como um pilar para inibir falsificação e mercado paralelo.
Para não confundir: quando reportagens dizem “segundo a USP…”, quase sempre estão citando um parecer econômico que usa dados de mercado (como os da Euromonitor) para defender política de controle — não um estudo da USP que tenha medido “1/3 falsificado”.
4) USP (2022): o que mostrou a análise forense de uísques apreendidos
A dissertação de mestrado da USP em Ribeirão Preto (2022/2023) não mede o mercado; ela testa métodos analíticos (cromatografia, perfis de compostos voláteis e avaliação sensorial) em 42 amostras de uísque apreendidas pela polícia. Resultado: ≈ 40% das amostras não continham metade dos voláteis típicos de uísques originais e ≈ 10% apresentaram apenas etanol — um “sinal forte” de adulteração severa.
Contexto crucial: são amostras suspeitas já confiscadas — não fotografia das prateleiras do varejo formal. Ainda assim, a dissertação é valiosa para qualificar a investigação de falsificação e aprimorar métodos periciais.
5) FHORESP (2024/2025): o polêmico “36%” e sua fragilidade metodológica
A FHORESP (federação setorial) divulgou um relatório que viralizou ao afirmar que “36% do volume total de bebidas no país pode ser ilegal” e que “uma em cada cinco vodcas” seria adulterada. O próprio documento admite limitações: estimativas feitas por projeções com base em tendências, fontes abertas, observação empírica e uma enquete com sindicatos/empresas; não há detalhe de amostragem nem cálculo reprodutível. Em linhas gerais, o texto não separa bem o que é contrabando, sonegação e falsificação; usa “fraudulenta” em sentido amplo; e extrapola inferências do estado de São Paulo para o Brasil.
Apesar das manchetes em 30/09/2025 repetirem o “36%” como “falsificadas”, trata-se, na melhor leitura, de mercado ilegal/irregular (ilícitos somados), e não de falsificação isoladamente.
6) Por que o “número único” engana
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Estudos medem coisas diferentes.
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Euromonitor (2024): modelagem de mercado ilegal por categoria e por tipo de ilicitude; perdas fiscais; ranking de falsificação por bebida.
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FEA-USP (SICOBE): análise econômico-financeira (receita x tributos) e defesa de rastreabilidade.
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USP (dissertação 2022): perícia em amostras apreendidas (não mercado formal) e validação de métodos.
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FHORESP (2024/25): estimativa setorial com fragilidades metodológicas assumidas.
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Comunicação importa. “~30% ilegal em destilados” (Euromonitor 2023) não é “~30% falsificado”. Falsificação foi 12% do ilícito em destilados — algo bem diferente.
7) O que isso significa para você (consumidor)
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Compre em canais formais. Supermercados, lojas especializadas, e-commerces oficiais e distribuidores autorizados reduzem drasticamente a exposição ao ilícito. O problema se concentra em canais informais e “ofertas milagrosas”.
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Desconfie de preços baixos demais em destilados de marca. A margem “boa demais para ser verdade” costuma financiar fraude.
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Cheque lacre, rótulo e tampa (alinhamento, impressão, cola, relevo).
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Verifique lote/QR code quando disponível.
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Exija nota fiscal (bar, restaurante e varejo).
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No balcão: peça para ver a garrafa sendo aberta; casas sérias mostram.
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Sinais sensoriais estranhos? Pare de consumir e procure assistência.
Sobre metanol: casos recentes estão ligados a produtos clandestinos. A melhor defesa é evitar o mercado paralelo e seguir o checklist acima.
8) Política pública e fiscalização inteligente: por que o SICOBE volta ao debate
Sistemas de rastreabilidade e contagem em linha, como o SICOBE, reduzem a subnotificação, alinham produção declarada com arrecadação efetiva e dificultam produção sem registro e reenvase/falsificação. O Parecer FEA-USP mostra o descolamento pós-2016 (receita do setor ↑83% vs. tributos ↑~34%), sustentando a reativação/adaptação do sistema como medida de equidade competitiva e proteção do consumidor.
9) Perguntas frequentes (FAQ)
É falso dizer que “um terço é falsificado”?
É impreciso. A Euromonitor mostra que ~30% do mercado de destilados em 2023 era ilegal, mas falsificação foi 12% do ilícito — não do total do mercado.
Onde está o maior risco?
Em canais informais e em “ofertas impossíveis” de destilados de marca. Em canais formais com cadeia de suprimentos auditável, o risco despenca.
Cerveja é falsificada?
Aparece no ranking por volume (porque o mercado é enorme), mas nos fermentados o ilícito é predominantemente evasão; falsificação é menor.
A USP disse que 1/3 é falsificado?
Não. O que circula com “USP” geralmente é o Parecer FEA-USP (FIA) sobre o SICOBE, que cita dados de mercado para defender rastreabilidade; não é um estudo que tenha medido “1/3 falsificado”.
10) Conclusão
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Sim, falsificação existe — e precisamos combatê-la.
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Não, isso não quer dizer que “um terço” das garrafas do varejo formal seja falso.
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O problema é heterogêneo: nos destilados, evasão e produção sem registro respondem pela maior parte do ilícito; falsificação é 12% do volume ilegal em 2023.
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Rastreabilidade (SICOBE ou equivalente), fiscalização inteligente e compra responsável são a tríade que funciona.
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